Poesias, crônicas, contos e dramaturgia escritas por: Geraldo Bernardo, tendo como cenário o sertão, seus personagens e mitos.


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ZÉ PIMBA, A HISTÓRIA DE UM DOIDO SABIDO. ESCUTADA E RECONTADA PELO DOIDO ARUPEMBA DE CÃINDA – CAP. FINAL - LIÇÃO COM GALHO DE PINHÃO ROXO CORTADO DOIS DIAS ANTES

Escrito por : Geraldo Bernardo em sexta-feira, 21 de dezembro de 2012 | 6:30 AM






Geraldo Bernardo
 
Eu vou dizer, eu vou contar. Esses meninos e meninas de hoje em dia, cheios de proteção, estão ficando todos mofinos. Com Zé Pimba tinha disso não. Escreveu não leu o pau comeu e, foi numa destas comilanças de surras que ele aprendeu a esquecer aquela que na vida foi a primeira que amou. Amou de tal maneira que, até hoje, não esqueceu o riso debochado da moleca véia. Amor que o proíbe de dizer “eu te amo” a outra pessoa, só porque não disse a Daquina quanto a amava. E é por isso que ele desconversa cada vez que lhe perguntam: tu me amas?
Da mal fadada aventura no Poço de Manoel Pedro, restou em Zé Pimba algumas cicatrizes. A primeira no dedo, essa daí até que sarou logo e parou de doer. A segunda no espinhaço doeu muito e só sarou depois de muitos anos. A terceira cicatriz, essa ainda dói, não é bem cicatrizada ainda, é uma chaga disfarçada que arruína vez em quando, quando as carnes estão reimosas, não destas reimosias de quem come coisa carregada, é reimosia de juízo que só é curada pelo tempo, às vezes não há tempo que cure, mas, que doutores e doutoras, que dizem saber mais da gente que a gente mesmo, teimam em curar com as tal das psicologias.
O dedão da mão direita de Zé Pimba, ainda hoje, parece com uma cabeça aleijada de lagartixa, como se a bichinha ficasse olhando de um lado para outro e sofresse paralisia no cangote quando fosse olhar para o outro lado. Ficou uma ferida feia por quase três meses, e olha que ele cuidou, botou tudo quanto foi remédio do mato: mascou folha de mufumbo e cuspiu em cima; botou lama virgem da beira do rio, botou teia de aranha, borra de café, mas, só curou mesmo quando ele borrifou o mata-bicheira das vacas de Seu Antonino.
No espinhaço de Zé Pimba, ainda hoje, há algumas cicatrizes. Tem uma marca grande bem ao lado da espinha, mas num é desta que quero falar, esta foi feita por uma roseta de arame, quando ele foi buscar uma lata para entregar o pai. É que ele ia numa ligeireza e teve que passar uma cerca de arame com pressa e terminou rasgando o espinhaço. Não foi da vez que o pai quebrou o dente dele com a lata não, não foi. Da vez que o pai quebrou o dente, quebrou também a venta. Foi tanto sangue, mas a culpa foi dele, Zé Pimba, onde já se viu entregar uma lata para uma pessoa, que estava com as mãos sujas de mel de abelha, ele entregou a lata segurando-a pelo cabo e deixando o fundo da lata (sem apoio) para que o pai pegasse. Claro, certo estava o pai, que deu uma bordoada tão grande na lata que ricocheteou na cara de Zé Pimba, quebrando-lhe um dos incisivos, de maneira que foi até bom, pois ele deixou aquela mania de querer cuspir por entre os dentes.
O espinhaço de Zé Pimba tem várias cicatrizes. Algumas a gente vê, ele até mostra, mas, a que ele não mostra ou fica mudo quando alguém pergunta o que foi, é uma cicatriz pequena, lá nele, em riba da pá. É uma lembrança triste pra ele, eu acho, pois esse Zé, que ainda é meu parente, lembra-se de uma surra que sofreu e que fez com que ele saísse da casa dos pais e nunca mais voltou pra morar. Foi da vez que ele quase se afogou no poço de Manoel Pedro, querendo se mostrar pra Daquina, a tipa da moleca véia. Naquele dia passado, do qual já falei aqui nesta latada, o peste do abestado quase que morreu afogado. Não fosse Zefa Crente, que com muita coragem, ter arrastado o desinfeliz para fora d’água, não tinha sobrado nem o nome para pôr noutro vivente.
O caso ficou mais dramático e cheio de encabulecimento para Zé Pimba, pois quando foi arrastado pra fora d’água, estava completamente nu. Mostrando as vergonhas, que foram cobertas por Zefa Crente quando o arrastou pelos cabelos, pois cada vez que pegava-o por uma peça da roupa, esta se rasgava. Na verdade ele nem precisava ter tanta vergonha, estava desmaiado, só acordou quando já havia chegado em casa. É que Zefa Crente mandou Daquina ir chamar a mãe de Zé Pimba e quando esta chegou alvoroçada à beira do rio, Zefa Crente estava acabando de resgatar o Zé, completamente nu e desmaiado. Tentaram reanimá-lo com fumaça de boró, mas ele não acordou, foi quando apareceu o pai e deu-lhe dois bofetes, Zé Pimba abriu os olhos, tentou falar, mas não conseguiu.
“Besta-fera dos infernos, tu quer morrer desgraçado? Tá com os seiscentos mil diabos, gota serena?”
Era o pai esbravejando. A mãe ainda disse pra parar com aquilo, mas levou também umas bordoadas e começou a chorar.
“Eu devia matar era os dois. É cada ente sem futuro na minha vida. Que só sendo o cão dos infernos pra atanazar. Vai peste leva teu filho mofino daqui, antes que eu... sei não... sei não...”
O pai esbravejou, esbravejou e como estava com muita raiva ainda deu um cascudo, com tanta força, que Zé Pimba voltou ao mundo dos desmaiados. A mãe, toda chorosa, levou-o nos braços para o casebre de taipa que tinha sido do finado Adonias. Zefa Crente acompanhou e logo as duas passaram a cuidar do afogado, dando-lhe água morna para beber e vomitar, era o melhor remédio para cuidar de afogamento naquelas paragens.
Naquele mesmo dia o pai de Zé Pimba cortou um galho de pinhão roxo, deixou à sombra, no caminho que dava pro reservo onde ficava a vaquinha Chuíte. Dois dias depois, cheio de vergonha e encabulecimento, Zé Pimba saiu de casa. Nada dava certo, melhor era esquecer Daquina, pensava. Não queria encontrar ninguém, só saiu de casa para ir deixar o almoço do pai na vazante de batata. Na cabeça era um converseiro consigo mesmo, confabulações, Zé Pimba planejava, planejava, planejava... era tanta coisa, o juízo fervendo de tanto pensar no que fazer,
“quando crescer eu vou ficar rico, talvez Daquina goste de mim e talvez eu esqueça que ela me viu nu”.
Estava tão perdido nas lembranças e planejamentos, que ao passar pelo Juazeiro da Emenda (era uma emenda de cerca velha com a cerca nova que dava nome ao lugar) não viu o pai, de cócoras esperando por ele. Quando riscou, tava em cima da figura aterradora do pai. Não entendeu, mas ainda falou:
“O seu almoço, painho”.
Sem dizer muita coisa, o pai o segurou pela orelha, tomou-lhe o prato de farofa de feijão com cuscuz e torresmo que vinha envolto numa rodilha de algodão, tomou a refeição empacotada como estava e jogou-a, com toda a força, bem longe.
“Isso é hora de você trazer meu almoço? Satanás?”
Zé Pimba sentiu fugir todo o sangue das fuças e mijou-se todo. O pai, sem largar-lhe a orelha, foi arrastando-o para debaixo do Juazeiro da Emenda. Pegou o galho de pinhão roxo, que estava encoberto por umas folhagens – assim tratado o pinhão roxo cria certa maleabilidade, ficando com a consistência de um emborrachado – isso é que é engenhosidade professor Martins. Pois bem, o pai pegou esse galho de pinhão roxo e começou a bater no Zé Pimba.
“Sabe por que tá apanhando? Ente ruim? É pra aprender a ser gente”
Batia e fungava, Zé Pimba abriu o berrador de chorar, mas recebeu uma tapa por cima do comedor de lavagem,
“entupa-se, engula o choro, senão eu te mato desgraçado.”
Era o pai organizando a surra para que fosse duradora e ninguém viesse acudir aquele “jumento morto”.
Zé Pimba caiu ao chão e o galho de pinhão, sendo manejado pelo pai, não parava de açoitar-lhe o espinhaço. A esta altura, Zé Pimba já estava sem camisa, todo mijado e cagado e só fazia grunhir. O pai vociferava:
“você nunca mais pega anzol sem minha ordem”
E tome surra.
“fica fazendo vergonha a gente, essa peste ruim”
O espinhaço de Zé Pimba ainda hoje tem as cicatrizes desta surra. A maior, em cima da pá, ele engasga toda vez que vai explicar a alguém do que se trata.
Naquele dia a surra foi tão grande que Zé Pimba, já estava desmaiado, ia morrer, quando sua avó paterna apareceu, milagre divino só pode ter sido, ia visitar o filho, Dona Otília, quando viu que ele açoitava o neto como se fosse um bicho.
Foi a salvação de Zé Pimba. Naquele dia a morte não o levou, quem o levou foi a avó, quer dizer ela levou-o para morar com ela. No momento de sua aparição, o pai de Zé Pimba soltou o pinhão roxo e, com os olhos avermelhados, a boca espumando, rumou em direção ao casebre, chegando lá disse para a esposa, que já estava apreensiva com a presença dele, disse num tom de loucura:
“Vá cuidar do cão dos infernos de seu filho que tá fingindo de morto lá no Juazeiro da Emenda”.
Ela ainda ia perguntar o que tinha acontecido, mas o marido percebendo a pergunta no olhar foi mais rápido e disse,
“e não invente de trazer-lhe aqui pra casa senão eu mato os dois”.
Pois é. Claudinha, se tu conhecesses Zé Pimba como eu conheço, nem ia perceber que ele tinha essas histórias. Digo-lhe, professora Elizeth, com toda a convicção, aquele cabra soube o que era sair da vida de bicho bruto. Depois que foi morar com a avó, ficou mais sossegado, depois um tio levou-o para a cidade, lá aprendeu um monte coisas, foi servente de pedreiro, faxineiro, limpador de fossas, estudou, virou vendedor, depois poeta-doido e por fim virou quase um doutor das letras. Um cientista das palavras, um artesão dos fonemas, como ele gosta de ser chamado. Eu, de minha parte, conto isso para que as pessoas, assim do porte de vocês fiquem sabendo que eu conheço um parente meu que passou por tudo isto e nem doido de verdade ficou.
Essa é uma história de doido, não é o doido que vive a história, doido é quem conta.
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